Convém conhecer o perfil dessa figura que, a cada dia se firma como líder de atentado contra a democracia, caso as Instituições não reajam a tempo
12 julho, 2008 • Olímpio Cruz Neto
A decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, de conceder novo habeas corpus em favor do empresário Daniel Dantas, resultando em sua soltura ainda na sexta-feira, 11 de julho, provocou um vendaval no meio jurídico. Na blogosfera, surgiram ataques ao magistrado, mas também houve quem saísse em defesa do ministro. Juízes e procuradores atacaram Gilmar Mendes. Juristas, como o professor Yves Gandra Martins, saíram em sua defesa. O juiz aposentado Walter Maierovitch chegou a insinuar que a posição de Mendes seria suficiente para pedir a abertura de um processo de impeachment. Eis o ambiente de secura que está a capital da República.
O ministro Gilmar Mendes é polêmico. Sua passagem pela Advocacia Geral da União (AGU), durante a gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, foi marcada por muitas vitórias expressivas suas na defesa do governo, em diversas instâncias judiciais – inclusive no STF. Mas também ficou indelevelmente riscada por questões controversas, como os ataques que fez à atuação do Ministério Público Federal. Curioso é que Gilmar Mendes é egresso do MPF.
Colegas desse mesmo MPF entraram com duas ações por improbidade administrativa quando ele ainda estava na AGU, questionando sua atuação no cargo. Em pelo menos um caso controverso, o dos precatórios do DNER, acompanhei de perto. Esse escândalo financeiro envolveu denúncias de fraudes com o pagamento de dívidas contra a cúpula do Ministério dos Transportes e procuradores da autarquia, extinta pouco depois na gestão FHC. Conheço bem o caso porque foi alvo de uma série de reportagens que fiz no Correio Braziliense e que renderam a mim, a Rudolfo Lago e a Denise Rotenburg, o Grande Prêmio CNT de Jornalismo 2001.
Os primeiros indícios de fraudes com os precatórios do DNER vieram a público no final dos anos 90. Mais precisamente, em 1999. Foi quando Monica Bergamo, na Folha de S.Paulo, jogou luz sobre o caso. As reportagens da Folha sobre os indícios de graves irregularidades naquela autarquia resultaram na abertura de uma investigação pela Corregedoria da AGU, ainda antes de Gilmar chegar à chefia do órgão. A investigação interna da AGU apontou maracutaias perpetradas contra os cofres públicos, num esquema que contaria com a ajuda e o beneplácito de alguns procuradores do DNER.
A investigação foi conduzida pelos procuradores da AGU Zadiel Lobato de Oliveira, Alexandre Penido Duque Estrada e pela advogada da União Ana Valéria de Andrade Rabêlo. O relatório final da correição, de nº 067/2001, enumerava evidências e reunia documentos demonstrando que a decisão de fazer os acordos extrajudiciais que deram prejuízo aos cofres públicos tinham não apenas o conhecimento, mas o aval do então ministro dos Transportes, Eliseu Padilha. As fraudes teriam ocorrido em pelo menos 41 processos e sangrado dos cofres públicos cerca de R$ 130 milhões.
O caso era grave e altamente explosivo, porque as investigações mostravam que o esquema de propina beneficiava políticos do PMDB. Publiquei no Correio, junto com Rudolfo Lago e Denise Rotenburg, cerca de 50 reportagens entre 2001 e 2002. O então senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), interessado em detonar a presença do PMDB de Jader Barbalho no governo, passou a reverberar as denúncias em pronunciamentos no Congresso. Mas nunca precisou ataques a Mendes.
O então advogado-geral da União Gilmar Mendes teria pecado, segundo procuradores da República, por omissão. Não teve absolutamente nada a ver com o centro das denúncias. Foi exclusivamente porque a remessa dos autos do processo de correição da AGU demorou para chegar ao MPF. E isso não é pouco. O relatório ficou pronto em 2000. Mas as conclusões da Corregedoria só chegaram às mãos de procuradores que também apuravam as irregularidades em 2001.
Entre a conclusão da investigação da Corregedoria da AGU e a remessa do relatório ao MPF, Gilmar foi alçado ao cargo de advogado-geral da União, substituindo Geraldo Quintão. Fontes chegaram a afirmar que Mendes teria sido alçado ao cargo justamente por conta disso: sentar no processo. Não creio. Foi colocado na AGU porque era – e é – um jurista brilhante.
Mas, continuando, foi por conta dessa demora em encaminhar os documentos, que Gilmar foi acusado pelos procuradores Marcus da Penha, Guilherme Schelb e Valquíria Quixadá de omissão. Respondia a uma ação de improbidade pela suspeita de ter retardado que a investigação interna da AGU chegasse ao MPF.
O ministro sempre negou e disse ter feito tudo que estava a seu alcance. Acusou os procuradores de agirem em nome do PCdoB – o então deputado federal Agnelo Queiroz (PCdoB-DF) foi quem tornou o caso público e passou os documentos ao Correio. Segundo Gilmar Mendes, os procuradores agiam movidos pelo interesse da oposição, que hoje está no governo federal.
A ação por improbidade administrativa contra Mendes acabou sendo extinta pelo próprio Supremo Tribunal Federal, em março de 2008. A outra ação por improbidade – aberta em 2002, quando Gilmar Mendes estava na chefia da AGU, por ter autorizado o pagamento de R$ 32.400 ao Instituto Brasiliense de Direito Público, para que os funcionários da AGU fizessem cursos naquela instituição – também foi extinta. Também este ano.
Dá para perceber que as relações entre o hoje presidente do STF e os procuradores da República são ruins há tempos. Ainda em 2001, Gilmar Mendes atraiu a ira de procuradores quando o governo Fernando Henrique Cardoso criou a Medida Provisória 2.088, que alterava a Lei de Improbidade Administrativa, prevendo multa de R$ 15 mil aos procuradores da República que entrassem com ações consideradas improcedentes contra autoridades públicas. A MP retirava dos membros do Ministério Público Federal o que eles consideravam ser condições necessárias e fundamentais de trabalho.
Sua opinião sobre a possibilidade de procuradores da República ingressarem contra autoridades federais, passou a ser parte da sua estratégia de ataques aos integrantes do MPF. Desde então, Gilmar Mendes vem insinuando que muitos dos membros do MPF agem motivados por interesse político. No ano passado, em 1º de março, durante debate em sessão plenária no STF, Gilmar Mendes citou nominalmente Guilherme Schelb, Valquíria Quixadá e Luiz Francisco de Souza, autores de inúmeras ações por improbidade administrativa contra membros do governo FHC, inclusive o próprio, agora presidente do STF. Os três procuradores foram responsáveis pelas duas ações contra Gilmar Mendes. A Associação Nacional dos Procuradores da República acusou Mendes de agir em benefício próprio.
Hoje, Gilmar Mendes é a autoridade máxima do Poder Judiciário – e dono de uma instituição de ensino superior em Brasília, o Instituto Brasiliense de Direito Público, ao lado do ex-procurador-geral da República Inocêncio Mártires Coelho. Agora, está no centro dessa crise institucional que começa a se desenhar no cerrado do Planalto Central.
Para mostrar que a polêmica atuação de Gilmar Mendes é alvo de críticas severas em muitos setores do meio jurídico – embora, claro, há quem o defenda, justamente, como o professor Yves Gandra Martins – leia, abaixo, o artigo do professor Dalmo de Abreu Dallari, publicado pela Folha em maio de 2002, por ocasião da indicação de Gilmar Mendes ao STF.
DEGRADAÇÃO DO JUDICIÁRIO
DALMO DE ABREU DALLARI
Nenhum Estado moderno pode ser considerado democrático e civilizado se não tiver um Poder Judiciário independente e imparcial, que tome por parâmetro máximo a Constituição e que tenha condições efetivas para impedir arbitrariedades e corrupção, assegurando, desse modo, os direitos consagrados nos dispositivos constitucionais.
Sem o respeito aos direitos e aos órgãos e instituições encarregados de protegê-los, o que resta é a lei do mais forte, do mais atrevido, do mais astucioso, do mais oportunista, do mais demagogo, do mais distanciado da ética.
Essas considerações, que apenas reproduzem e sintetizam o que tem sido afirmado e reafirmado por todos os teóricos do Estado democrático de Direito, são necessárias e oportunas em face da notícia de que o presidente da República, com afoiteza e imprudência muito estranhas, encaminhou ao Senado uma indicação para membro do Supremo Tribunal Federal, que pode ser considerada verdadeira declaração de guerra do Poder Executivo federal ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, à Ordem dos Advogados do Brasil e a toda a comunidade jurídica.
Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional. Por isso é necessário chamar a atenção para alguns fatos graves, a fim de que o povo e a imprensa fiquem vigilantes e exijam das autoridades o cumprimento rigoroso e honesto de suas atribuições constitucionais, com a firmeza e transparência indispensáveis num sistema democrático.
Segundo vem sendo divulgado por vários órgãos da imprensa, estaria sendo montada uma grande operação para anular o Supremo Tribunal Federal, tornando-o completamente submisso ao atual chefe do Executivo, mesmo depois do término de seu mandato. Um sinal dessa investida seria a indicação, agora concretizada, do atual advogado-geral da União, Gilmar Mendes, alto funcionário subordinado ao presidente da República, para a próxima vaga na Suprema Corte. Além da estranha afoiteza do presidente -pois a indicação foi noticiada antes que se formalizasse a abertura da vaga-, o nome indicado está longe de preencher os requisitos necessários para que alguém seja membro da mais alta corte do país.
É oportuno lembrar que o STF dá a última palavra sobre a constitucionalidade das leis e dos atos das autoridades públicas e terá papel fundamental na promoção da responsabilidade do presidente da República pela prática de ilegalidades e corrupção.
É importante assinalar que aquele alto funcionário do Executivo especializou-se em “inventar” soluções jurídicas no interesse do governo. Ele foi assessor muito próximo do ex-presidente Collor, que nunca se notabilizou pelo respeito ao direito. Já no governo Fernando Henrique, o mesmo dr. Gilmar Mendes, que pertence ao Ministério Público da União, aparece assessorando o ministro da Justiça Nelson Jobim, na tentativa de anular a demarcação de áreas indígenas. Alegando inconstitucionalidade, duas vezes negada pelo STF, “inventaram” uma tese jurídica, que serviu de base para um decreto do presidente Fernando Henrique revogando o decreto em que se baseavam as demarcações. Mais recentemente, o advogado-geral da União, derrotado no Judiciário em outro caso, recomendou aos órgãos da administração que não cumprissem decisões judiciais.
Medidas desse tipo, propostas e adotadas por sugestão do advogado-geral da União, muitas vezes eram claramente inconstitucionais e deram fundamento para a concessão de liminares e decisões de juízes e tribunais, contra atos de autoridades federais.
Indignado com essas derrotas judiciais, o dr. Gilmar Mendes fez inúmeros pronunciamentos pela imprensa, agredindo grosseiramente juízes e tribunais, o que culminou com sua afirmação textual de que o sistema judiciário brasileiro é um “manicômio judiciário”.
Obviamente isso ofendeu gravemente a todos os juízes brasileiros ciosos de sua dignidade, o que ficou claramente expresso em artigo publicado no “Informe”, veículo de divulgação do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (edição 107, dezembro de 2001). Num texto sereno e objetivo, significativamente intitulado “Manicômio Judiciário” e assinado pelo presidente daquele tribunal, observa-se que “não são decisões injustas que causam a irritação, a iracúndia, a irritabilidade do advogado-geral da União, mas as decisões contrárias às medidas do Poder Executivo”.
E não faltaram injúrias aos advogados, pois, na opinião do dr. Gilmar Mendes, toda liminar concedida contra ato do governo federal é produto de conluio corrupto entre advogados e juízes, sócios na “indústria de liminares”.
A par desse desrespeito pelas instituições jurídicas, existe mais um problema ético. Revelou a revista “Época” (22/4/ 02, pág. 40) que a chefia da Advocacia Geral da União, isso é, o dr. Gilmar Mendes, pagou R$ 32.400 ao Instituto Brasiliense de Direito Público -do qual o mesmo dr. Gilmar Mendes é um dos proprietários- para que seus subordinados lá fizessem cursos. Isso é contrário à ética e à probidade administrativa, estando muito longe de se enquadrar na “reputação ilibada”, exigida pelo artigo 101 da Constituição, para que alguém integre o Supremo.
A comunidade jurídica sabe quem é o indicado e não pode assistir calada e submissa à consumação dessa escolha notoriamente inadequada, contribuindo, com sua omissão, para que a arguição pública do candidato pelo Senado, prevista no artigo 52 da Constituição, seja apenas uma simulação ou “ação entre amigos”. É assim que se degradam as instituições e se corrompem os fundamentos da ordem constitucional democrática.
Folha de S.Paulo, 8 de maio de 2002
Erival Capristano: A Dinastia dos Mendes em Diamantino - MS
Os Mendes mandam em Diamantino desde os tempos áureos da ARENA. Houve um pequeno hiato com a eleição de Erival Capistrano que, como se sabe, não demorou ser destituídio do cargo num processo obscuro.
A revista CartaCapital, deste final de semana, traz em sua capa uma ampla reportagem de Leandro Fortes sobre o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, e as relações de sua família com as várias esferas de poder. A revista de Mino Carta revela como o ministro atua politicamente para reforçar o naco de poder do irmão, prefeito de Diamantino (MT), cidade da família Mendes. A reportagem mostra um homem muito diferente da face pública.
Escreve Leandro Fortes: “Em Diamantino, a 208 quilômetros de Cuiabá, em Mato Grosso, o ministro é a parte mais visível de uma oligarquia nascida à sombra da ditadura militar (1964-1985), mas derrotada, nas eleições passadas, depois de mais de duas décadas de dominação política”.
A reportagem aponta que o irmão de Gilmar, o atual prefeito Francisco Mendes Júnior, vinha conseguindo se manter no cargo graças à influência política do presidente do STF. “Nas campanhas de 2000 e 2004, Gilmar Mendes, primeiro como advogado-geral da União do governo Fernando Henrique Cardoso e, depois, como ministro do STF, atuou ostensivamente para eleger o irmão. Para tal, levou a Diamantino ministros para inaugurar obras e lançar programas, além de circular pelos bairros da cidade, cercado de seguranças, a pedir votos para o irmão-candidato e, eventualmente, bater boca com a oposição”.
Leia abaixo a íntegra da reportagem.
PODERNOS RINCÕES DOS MENDESEM SUA TERRA NATAL, O PRESIDENTE DO STF E A FAMÍLIA AGEM COMO CORONÉIS
Leandro Fortes
DE DIAMANTINO (MT)
Existe um lugar, nas entranhas do Centro-Oeste, onde a vetusta imagem do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, nada tem a ver com aquela que lhe é tão cara, de paladino dos valores republicanos, guardião do Estado de Direito, diligente defensor da democracia contra a permanente ameaça de um suposto – e providencial – “Estado policial”. Em Diamantino, a 208 quilômetros de Cuiabá, em Mato Grosso, o ministro é a parte mais visível de uma oligarquia nascida à sombra da ditadura militar (1964-1985), mas derrotada, nas eleições passadas, depois de mais de duas décadas de dominação política.
O atual prefeito de Diamantino, o veterinário Francisco Ferreira Mendes Júnior, de 50 anos, é o irmão caçula de Gilmar Mendes. Por oito anos, ao longo de dois mandatos, Chico Mendes, como é conhecido desde menino, conseguiu manter-se na prefeitura, graças à influência política do irmão famoso. Nas campanhas de 2000 e 2004, Gilmar Mendes, primeiro como advogado-geral da União do governo Fernando Henrique Cardoso e, depois, como ministro do STF, atuou ostensivamente para eleger o irmão. Para tal, levou a Diamantino ministros para inaugurar obras e lançar programas, além de circular pelos bairros da cidade, cercado de seguranças, a pedir votos para o irmão-candidato e, eventualmente, bater boca com a oposição.
Em setembro do ano passado, o ministro Mendes foi novamente escalado pelo irmão Chico Mendes para garantir a continuidade da família na prefeitura de Diamantino. Depois de se ancorar no grupo político do governador Blairo Maggi, os Mendes também migraram do PPS para o PR, partido do vice-presidente José Alencar, e ingressaram na base de apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – a quem, como se sabe, Mendes costuma, inclusive, chamar às falas, quando necessário. Maggi e os Mendes, então, fizeram um pacto político regional, cujo movimento mais ousado foi a assinatura, em 10 de setembro de 2007, do protocolo de intenções para a instalação do Grupo Bertin em Diamantino, às vésperas do ano eleitoral de 2008.
Considerado um dos gigantes das áreas agroindustrial, de infra-estrutura e de energia, o Bertin acabou levado para Diamantino depois de instalado um poderoso lobby político capitaneado por Mendes, então vice-presidente do STF, com o apoio do governador Blairo Maggi, a quem coube a palavra final sobre a escolha do local para a construção do complexo formado por um abatedouro, uma usina de biodiesel e um curtume. O investimento previsto é de 230 milhões de reais e a perspectiva de criação de empregos chega a 3,6 mil vagas. Um golpe de mestre, calcularam os Mendes, para ajudar a eleger o vereador Juviano Lincoln, do PPS, candidato apoiado por Chico Mendes à sucessão municipal.
No evento de assinatura do protocolo de intenções, Gilmar Mendes era só sorrisos ao lado do ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, a quem levou a Diamantino para prestigiar a gestão de Chico Mendes, uma demonstração de poder recorrente desde a primeira campanha do irmão, em 2000. Durante a cerimônia, empolgado com a presença do ministro e de dois diretores do Bertin, Blairo Maggi conseguiu, em uma só declaração, carimbar o ministro Mendes como lobista e desrespeitar toda a classe política mato-grossense. Assim falou Maggi: “Gilmar Mendes vale por todos os deputados e senadores de Mato Grosso”. Presente no evento estava o prefeito eleito de Diamantino, Erival Capistrano (PDT), então deputado estadual. “O constrangimento foi geral”, lembra Capistrano.
Ainda na festa, animado com a atitude de Maggi, o deputado Wellington Fagundes (PR-MT) aproveitou para sacramentar a ação do presidente do STF. “O ministro Gilmar Mendes tem usado o seu prestígio para beneficiar Mato Grosso, apesar de não ser nem do Executivo nem do Legislativo”, esclareceu, definitivo. Ninguém, no entanto, explicou ao público e aos eleitores as circunstâncias da empresa que tão alegremente os Mendes haviam conseguido levar a Diamantino.
O Grupo Bertin, merecedor de tanta dedicação do presidente do STF, foi condenado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), em novembro de 2007, logo, dois meses depois da assinatura do protocolo, por formação de cartel com outros quatro frigoríficos. Em 2005, as empresas Bertin, Mataboi, Franco Fabril e Minerva foram acusadas pela Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça de combinar os preços da comercialização de gado bovino no País. Foi obrigado a pagar uma multa equivalente a 5% do faturamento bruto, algo em torno de 10 milhões de reais. No momento em que Gilmar Mendes e Blairo Maggi decidiram turbinar a campanha eleitoral de Diamantino com o anúncio da construção do complexo agroindustrial, o processo do Bertin estava na fase final.
Ainda assim, quando a campanha eleitoral de Diamantino começou, em agosto passado, o empenho do ministro Mendes ara levar o Bertin passou a figurar como ladainha na campanha do candidato da família, Juviano Lincoln. Em uma das peças de rádio, o empresário Eraí Maggi, primo do governador, ao compartilhar com Chico Mendes a satisfação pela vinda do abatedouro, manda ver: “Tenho falado pro Gilmar, seu irmão, sobre isso”. Em uma das fazendas de soja de Eraí Maggi, o Ministério do Trabalho libertou, neste ano, 41 pessoas mantidas em regime de escravidão.
Tanto esforço mostrou-se em vão eleitoralmente. Em outubro passado, fustigado por denúncias de corrupção e desvio de dinheiro, o prefeito Chico Mendes foi derrotado pelo notário Erival Capistrano, cuja única experiência política, até hoje, foi a de deputado estadual pelo PDT, por 120 dias, quando assumiu o cargo após ter sido eleito como suplente. “Foi a vitória do tostão contra o milhão”, repete, como um mantra, Capistrano, a fim de ilustrar a maneira heróica como derrotou, por escassos 418 votos de diferença, o poder dos Mendes em Diamantino. De fato, não foi pouca coisa.
Em Diamantino, a família Mendes se estabeleceu como dinastia política a partir do golpe de 1964, sobretudo nos anos 1970, época em que os militares definiram a região, estrategicamente, como porta de entrada para a Amazônia. O patriarca, Francisco Ferreira Mendes, passou a alternar mandatos na prefeitura com João Batista Almeida, sempre pela Arena, partido de sustentação da ditadura. Esse ciclo foi interrompido apenas em 1982, quando o advogado Darcy Capistrano, irmão de Erival, foi eleito, aos 24 anos, e manteve-se no cargo por dois mandatos, até 1988. A dobradinha Mendes-Batista Almeida só voltaria a funcionar em 1995, bem ao estilo dinástico da elite rural nacional, com a eleição, primeiro, de João Batista Almeida Filho. Depois, em 2000, de Francisco Ferreira Mendes Júnior, o Chico Mendes.
Gilmar nasceu em Diamantino em 30 de dezembro de 1955. O lugar já vivia tempos de franca decadência. Outrora favorecida pelo comércio de diamantes, ouro e borracha por mais de dois séculos, a cidade natal do atual presidente do STF se transformou, a partir de meados do século XX, num município de economia errática, pobre e sem atrativos turísticos, dependente de favores dos governos federal e estadual. Esse ambiente de desolação social, cultural e, sobretudo, política favoreceu o crescimento de uma casta coronelista menor, se comparada aos grandes chefes políticos do Nordeste ou à aristocracia paulista do café, mas ciosa dos mesmos métodos de dominação.
Antes do presidente do STF, a figura pública mais famosa do lugar, com direito a busto de bronze na praça central da cidade, para onde os diamantinenses costumam ir para fugir do calor sufocante do lugar, era o almirante João Batista das Neves. Ele foi assassinado durante a Revolta da Chibata, em 1910, por marinheiros revoltosos, motivados pelos maus-tratos que recebiam de oficiais da elite branca da Marinha, entre eles, o memorável cidadão diamantinense.
Na primeira campanha eleitoral de Chico Mendes, em 2000, o então advogado-geral da União, Gilmar Mendes, conseguiu levar ministros do governo Fernando Henrique Cardoso para Diamantino, a fim de dar fôlego à campanha do irmão. Um deles, Eliseu Padilha, ministro dos Transportes, voltou à cidade, em agosto de 2001, ao lado de Mendes, para iniciar as obras de um trecho da BR-364. Presente ao ato, prestigiado como sempre, estava o irmão Chico Mendes. No mesmo mês, um dos principais assessores de Padilha, Marco Antônio Tozzati, acusado de fazer parte de uma quadrilha de fraudadores que atuava dentro do Ministério dos Transportes, juntou-se a Gilmar Mendes para fundar a Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas de Diamantino, a Uned.
O ministro Mendes, revelou CartaCapital na edição 516 (de 8 de outubro de 2008), é acionista de outra escola, o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), que obteve contratos sem licitação com órgãos públicos e empréstimos camaradas de agências de fomento. Não é de hoje, portanto, que o ensino, os negócios e a influência política misturam-se oportunamente na vida do presidente do Supremo.
No caso da Uned, o irmão-prefeito bem que deu uma mãozinha ao negócio do irmão. Em 1º de abril de 2002, Chico Mendes sancionou uma lei que autorizava a prefeitura de Diamantino a reverter o dinheiro recolhido pela Uned em diversos tributos, entre os quais o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto Sobre Serviços (ISS) e sobre alvarás, em descontos nas mensalidades de funcionários e “estudantes carentes”. Dessa forma, o prefeito, responsável constitucionalmente por incrementar o ensino infantil e fundamental, mostrou-se estranhamente interessado em colocar gente no ensino superior da faculdade do irmão-ministro do STF.
Em novembro de 2003, o jornalista Márcio Mendes, do jornal O Divisor, de Diamantino, entrou com uma representação no Ministério Público Estadual de Mato Grosso, para obrigar o prefeito a demonstrar, publicamente, que funcionários e “estudantes carentes” foram beneficiados com a bolsa de estudos da Uned, baseada na renúncia fiscal – aliás, proibida pela Lei de Responsabilidade Fiscal – autorizada pela Câmara de Vereadores. Jamais obteve resposta. O processo nunca foi adiante, como, de praxe, a maioria das ações contra Chico Mendes. Atualmente, Gilmar Mendes está afastado da direção da Uned. É representado pela irmã, Maria Conceição Mendes França, integrante do conselho diretor e diretora-administrativa e financeira da instituição.
O futuro prefeito, Erival Capistrano, estranha que nenhum processo contra Chico Mendes tenha saído da estaca zero e atribui o fato à influência do presidente do STF. Segundo Capistrano, foram impetradas ao menos 30 ações contra o irmão do ministro, mas quase nada consegue chegar às instâncias iniciais sem ser, irremediavelmente, arquivado. Em 2002, a Procuradoria do TCE mato-grossense detectou 38 irregularidades nas contas da prefeitura de Diamantino, entre elas a criação de 613 cargos de confiança. A cidade tem 19 mil habitantes. O Ministério Público descobriu, ainda, que Chico Mendes havia contratado quatro parentes, inclusive a mulher, Jaqueline Aparecida, para o cargo de secretária de Promoção Social, Esporte e Lazer.
No mesmo ano de 2002, o vereador Juviano Lincoln (ele mesmo, o candidato da família) fez aprovar uma lei municipal, sancionada por Chico Mendes, para dar o nome de “Ministro Gilmar Ferreira Mendes” à avenida do aeródromo de Diamantino. Dois cidadãos diamantinenses, o advogado Lauro Pinto de Sá Barreto e o jornalista Lúcio Barboza dos Santos, levaram o caso ao Senado Federal. À época, o presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), não aceitou a denúncia. No Tribunal de Justiça de Mato Grosso, a acusação contra a avenida Ministro Gilmar Mendes também não deu resultados e foi arquivada, no ano passado.
A lentidão da polícia e da Justiça na região, inclusive em casos criminais, acaba tendo o efeito de abrir caminho a várias suspeitas e deixar qualquer um na posição de ser acusado – ou de ver o assunto explorado politicamente.
Em 14 de setembro de 2000, na reta final da campanha eleitoral, a estudante Andréa Paula Pedroso Wonsoski foi à delegacia da cidade para fazer um boletim de ocorrência. Ao delegado Aldo Silva da Costa, Andréa contou, assustada, ter sido repreendida pelo então candidato do PPS, Chico Mendes, sob a acusação de tê-lo traído ao supostamente denunciar uma troca de cestas básicas por votos, ao vivo, em uma emissora de rádio da cidade. A jovem, de apenas 19 anos, trabalhava como cabo eleitoral do candidato, ao lado de uma irmã, Ana Paula Wonsoski, de 24 – esta, sim, responsável pela denúncia.
Ao tentar explicar o mal-entendido a Chico Mendes, em um comício realizado um dia antes, 13 de setembro, conforme o registro policial, alegou ter sido abordada por gente do grupo do candidato e avisada: “Tome cuidado”. Em 17 de outubro do mesmo ano, 32 dias depois de ter feito o BO, Andréa Wonsoski resolveu participar de um protesto político.
Ela e mais um grupo de estudantes foram para a frente do Fórum de Diamantino manifestar contra o abuso de poder econômico nas eleições municipais. A passeata prevista acabou por não ocorrer e Andréa, então, avisou a uma amiga, Silvana de Pino, de 23 anos, que iria tentar pegar uma carona para voltar para casa, por volta das 19 horas. Naquela noite, a estudante desapareceu e nunca mais foi vista. Três anos depois, em outubro de 2003, uma ossada foi encontrada por três trabalhadores rurais, enterrada às margens de uma avenida, a 5 quilômetros do centro da cidade. Era Andréa Wonsoski.
A polícia mato-grossense jamais solucionou o caso, ainda arquivado na Vara Especial Criminal de Diamantino. Mesmo a análise de DNA da ossada, requerida diversas vezes pela mãe de Andréa, Nilza Wonsoski, demorou outros dois anos para ficar pronta, em 1º de agosto de 2005. De acordo com os três peritos que assinam o laudo, a estudante foi executada com um tiro na nuca. Na hora em que foi morta, estava nua (as roupas foram encontradas queimadas, separadas da ossada), provavelmente por ter sido estuprada antes.
Chamado a depor pelo delegado Aldo da Costa, o prefeito Chico Mendes declarou ter sido puxado pelo braço “por uma moça desconhecida”. Segundo ele, ela queria, de fato, se explicar sobre as acusações feitas no rádio, durante o horário eleitoral de outro candidato. Mendes alegou não ter levado o assunto a sério e ter dito a Andréa Wonsoski que deixaria o caso por conta da assessoria jurídica da campanha.
CartaCapital tentou entrar em contato com o ministro Gilmar Mendes, mas o assessor de imprensa, Renato Parente, informou que o presidente do STF estava em viagem oficial à Alemanha. Segundo Parente, apesar de todas as evidências, inclusive fotográficas, a participação de Mendes no processo de implantação do Bertin em Diamantino foi “zero”. Parente informou, ainda, que a participação do ministro nas campanhas do irmão, quando titular da AGU, foram absolutamente legais, haja vista ser Mendes, na ocasião, um “ministro político” do governo FHC. O assessor não comentou sobre os benefícios fiscais concedidos pelo irmão à universidade do ministro.
A reportagem da Carta também procurou o prefeito Chico Mendes. O chefe de gabinete, Nélson Barros, prometeu contatar o prefeito e, em seguida, viabilizar uma entrevista, o que não aconteceu.
PASSAR A LIMPOELEITO EM OUTUBRO, ERIVAL CAPISTRANO, DE OPOSIÇÃO, PROMETE FAZER UMA AUDITORIA NAS CONTAS DA PREFEITURA. E SE DIZ AMEAÇADO DE MORTE
Depois de vencer, por 418 votos, uma eleição improvável contra o candidato da família do ministro Gilmar Mendes, o futuro prefeito de Diamantino (MT), Erival Capistrano (PDT), ainda não pode afirmar, com todas as letras, que vai mesmo assumir o cargo em 1º de janeiro de 2009. Isso porque Moacir Ferreira Mendes, irmão do presidente do STF, mandou avisar a Capistrano que vai matá-lo, até o dia da posse, segundo o prefeito eleito. Aos 52 anos, 40 dos quais dedicado a trabalhar no cartório de notas da família, Capistrano não perde a calma e entende a reação do clã dos Mendes, derrotado depois de duas décadas à frente do poder local. O desespero da família do ministro vem de uma promessa de campanha do prefeito eleito: fazer uma auditoria nas contas da prefeitura. “Quero descobrir para onde foi o dinheiro de Diamantino nos últimos 20 anos”, anuncia Capistrano.
CartaCapital: O senhor venceu o candidato Juviano Lincoln, do PPS, por uma margem muito pequena de votos. Por que foi tão difícil vencer o candidato da família do ministro Gilmar Mendes?
Erival Capistrano: As eleições sempre foram difíceis em Diamantino, mas o povo estava querendo mudança. E mesmo com toda a dificuldade, o eleitor teve a coragem de enfrentar o grupo de Gilmar Mendes.
CC: O presidente do STF teve influência direta na campanha?
EC: Gilmar Mendes é mais político do que ministro. Ele deveria estar além da política de Diamantino, que é uma coisa muito pequena. Ele usa de influência aqui desde a época em que era advogado-geral da União. Sempre usou a máquina administrativa do governo federal e vinha usando. Isso nos preocupou, mas não foi barreira.
CC: De que maneira Gilmar Mendes usava de influência nas campanhas?
EC: Ele foi ativo nas duas campanhas do irmão, Chico Mendes (Francisco Ferreira Mendes Júnior, atual prefeito de Diamantino), e também nesta última, do Juviano Lincoln, o candidato da família. Na primeira campanha, ele usou jatinhos da FAB. Quando era da AGU, usava de influência nos ministérios, pressionava políticos do estado, pressionava o governador (Blairo Maggi, do PR). Isso intimidava muitos agricultores endividados, que precisavam negociar com o Banco do Brasil, e eram levados a apoiar o grupo de Chico Mendes.
CC: Vocês nunca denunciaram essa situação?
EC: Sim, mas os processos eleitorais contra Chico Mendes nunca dão em nada. Os juízes eleitorais designados para Diamantino são sempre substitutos, colocados em cima da eleição. A Justiça já é morosa por natureza, mas parece que os processos contra o irmão do ministro são ainda mais. É muita influência de Gilmar Mendes. Nas campanhas passadas, a gente entrava com os processos e o ministro aparecia aqui, quando era da AGU (2000 a 2002), nos bairros, fazendo visitas, pedindo votos. Entrava nas casas.
CC: Por que o senhor decidiu fazer uma auditoria nas contas da prefeitura?
EC: Diamantino tem uma arrecadação de 3,1 milhões de reais mensais,com uma folha de pagamento de 1 milhão de reais. Logo, sobraria mais de 2 milhões de reais para investimentos, todo mês. E, nos últimos anos, a gente viu que não teve investimento em Diamantino. O que foi feito com a verba do governo federal? Nosso objetivo é saber onde colocaram esse dinheiro de investimento nos últimos oito anos.
CC: Como o senhor pretende averiguar isso?
EC: Vamos fazer uma auditoria independente. A gente gostaria que o Tribunal de Justiça de Mato Grosso e o Tribunal de Contas do Estado fizessem parte dessa investigação, mas, no caso, eles não fazem. Mas vamos usar a Lei de Responsabilidade Fiscal, porque as contas foram aprovadas, tanto pela Câmara Municipal como pelo TCE. Então, a gente vai procurar saber, depois que assumir, a realidade das coisas.
CC: Teme que a ameaça de morte contra o senhor se concretize?
EC: Não tenho medo. Eu estava fazendo uma visita em um bairro da cidade, quando recebi um telefonema do comitê. Um candidato a vereador do PDT e mais duas pessoas tinham ido à fazenda do irmão do ministro, o Moacir, e ele disse que eu poderia ganhar as eleições de Diamantino, mas que não assumiria, porque ele iria me matar. Fiz um boletim de ocorrência na delegacia de polícia. Não sei por que ele teve essa reação. Eu o conhecia como funcionário do Banco do Brasil, soube que anda sempre armado, mas nunca tive problema com ele.
CC: Avinda do frigorífico Bertin para Diamantino, comemorada com a presença do ministro Gilmar Mendes, no ano passado, foi muito usada na campanha de Juviano Lincoln. O senhor acha que houve interferência política nesse caso?
EC: Um pedido de Gilmar Mendes ao governo do Estado tem muita influência. Ele exerce o cargo dele para fazer política, também. No evento de anúncio da vinda do Bertin, o governador Blairo Maggi chegou a dizer que Gilmar Mendes valia mais do que a bancada de deputados e senadores de Mato Grosso. Quem é eleito pelo povo tem mais valor. O governador foi infeliz na declaração dele. Mas para o ego dele (Mendes) foi muito bom. Na campanha, eles começaram a dizer que, se eu viesse a ganhar as eleições, o Bertin iria embora de Diamantino. Eles falavam isso para ressaltar a influência do ministro Gilmar Mendes, que trouxe o Bertin para cá.
CC: O senhor acha que o ministro Gilmar Mendes tem pretensões eleitorais em Mato Grosso?
EC: Eu acredito que ele queira ser deputado federal ou senador. Quando a gente se encontra com o governador Blairo Maggi, a primeira coisa que ele lembra é que Diamantino é a terra do ministro Gilmar Mendes. É complicado por causa do poder que ele exerce, como presidente do Supremo, com influência no Tribunal Superior Eleitoral. A presença dele no dia da eleição foi ostensiva.
CC: Repercutiu, na política diamantinense, o caso do suposto grampo telefônico numa linha do ministro Gilmar Mendes?
EC: Esse grampo do STF foi ótimo para a gente, porque ele sumiu da campanha, ficou mais tempo em Brasília.Tenho que descobrir quem foi que fez esse grampo para ir lá depois fazer um agradecimento (risos).
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