As séries televisivas “Felizes Para Sempre?” e “Questão de Família” (Globo e GNT) apresentam sincronismos e insólitas coincidências envolvendo autor, diretor e o timing dos episódios que parecem espelhar na teledramaturgia notícias e imagens do telejornalismo da grande mídia . Estaria a todo vapor funcionando uma correia de transmissão entre os núcleos de novelas e o jornalismo da emissora? O sincronismo seria favorecido pelo vazamento antecipado de informações das investigações do Judiciário? Por outro lado poderia ser um sintoma do tautismo da TV Globo que, em crise, injeta realismo na teledramaturgia para recuperar a relevância perdida? Ou são apenas eventos sincromísticos?
Em 1982 ia ao ar na TV Globo a minissérie Quem Ama Não Mata, escrita por Euclydes Marinho. Eram épocas de abertura política na ditadura militar. O título fazia alusão a pichações nos muros de Belo Horizonte por conta do julgamento do playboy Doca Street, acusado de ter matado a mulher Ângela Diniz. A minissérie foi polêmica e contribuiu para o debate sobre os direitos da mulher numa sociedade que procurava o caminho para a democracia.
Trinta e três anos depois, Euclydes Marinho escreve a minissérie Felizes Para Sempre?, retornando ao tema dos dramas de relacionamentos de vários casais de uma mesma família da série de 1982. Somente que agora num contexto bem diferente: numa TV Globo que tenta reverter a sua crise de audiência e que simultaneamente assumiu o papel de oposição ao Governo Federal.
Casais de "Quem Ama Não Mata": 33 anos depois um País bem diferente |
E esse novo contexto certamente influiu no tom da minissérie atual: dos dramas familiares de 1982 passou para a abordagem política; do Rio de Janeiro, os dramas dos casais foram transferidos para Brasília e os capítulos praticamente se sincronizaram com as últimas ações da Operação Lava Jato da Polícia Federal.
Ao ponto de que o penúltimo capítulo, onde o protagonista corrupto Cláudio Drummond (empreiteiro que financiava campanhas eleitorais) é levado pela Polícia Federal para depoimentos, coincidiu com o noticiário de mais uma ação de impacto midiático da PF com as imagens da invasão da casa do tesoureiro do PT para os policiais intimá-lo a depor sob coerção.
Sincronismos ou coincidências?
Nesse ponto começam os incríveis sincronismos da série Felizes Para Sempre? Os capítulos foram produzidos e gravados em 2014. Segundo o diretor Fernando Meirelles, a série foi escrita em 2013: “O Paralelo com a Operação Lava Jato foi pura coincidência ou sorte”, disse.
Mais uma dessas “coincidências” foi outra minissérie da TV Globo de cunho político, O Brado Retumbante (2012), onde além do protagonista ser muito parecido com o candidato à presidência Aécio Neves (feito pelo ator Domingos Montagner), na trama ele chegava à presidência após a morte do presidente e vice em um acidente aéreo. Num insólita coincidência (ou sincronismo?), um acidente aéreo em 2014 matou o candidato à presidência pelo PSB Eduardo Campos, embaralhando a disputa eleitoral com o lançamento da sua vice Marina Silva.
Diretor de Felizes Para Sempre?, Fernando Meirelles pretendia assumir a direção da propaganda de Marina Silva caso fosse para o segundo turno. Segundo ele, colaborou com a campanha do PSB em 2014, no primeiro turno, “dando opiniões”.
Brado Retumbante também foi escrita por Euclydes Marinho. Na série, Paulo Ventura é um advogado e político que acaba sendo eleito presidente da Câmara dos Deputados em uma articulação para ser usado como fantoche. Após o acidente aéreo, vê-se obrigado a assumir a presidência.
Estranho sincronismo com a atualidade onde o novo presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha foi eleito através da “solidariedade de uma cadeia de agradecimentos” (Folha nov. 2014) de grandes companhias... em meio a um clima de pré-impeachment da presidenta Dilma... iniciado pela Operação Lava Jato da Polícia Federal... cujas ações se sincronizam com a minissérie Felizes Para Sempre?... dirigida pode Fernando Meirelles e escrita por Euclydes Marinho...
Série Questão de Família e o “juiz justiceiro”
Menos explícito na temática política, mas igualmente pegando carona no atual jogo Poder Judiciário/grande mídia, vazamentos seletivos de informações e delações premiadas, é a série Questão de Família do canal GNT das Organizações Globo.
Du Moscovis faz Pedro, juiz da Vara da Família que não tem uma rotina nada comum. Ao lado dos seus dilemas familiares e acompanhando casos de divórcio, constantemente relaciona os problemas dos outros com os seus. Isso o deixa inebriado pela necessidade de fazer justiça: Pedro acaba investigando pessoalmente cada caso que chega a sua mesa, chegando a contar com a ajuda de um detetive da polícia.
Na sua segunda temporada, a série foi lançada em um ano de campanha eleitoral onde os sistemáticos vazamentos das investigações da Lava Jato (iniciada em março e a série lançada um mês depois) à grande mídia deu a pauta de discussões. A grande estrela passou a ser o juiz federal Sérgio Moro, que para a grande mídia foi pintado com um perfil justiceiro e implacável – o juiz que “sacode o Brasil”, nos termos usados pelo El País Brasil – “intimidador até para os advogados de defesa”.
Revista "Questão"/"Época": o tautismo da TV Globo na ficção |
Questão de Família é mais uma série que segue paralela à judicialização da política na figura de juízes justiceiros – o juiz Pedro é a glamourização no campo da ficção desse novo personagem da política brasileira que ignora instâncias e recursos processuais preferindo a adrenalina dos linchamentos midiáticos.
Testando hipóteses
Como explicar os sincronismos dessas duas séries com o atual cenário tenso da política brasileira? Vamos “testar” (por favor, sem alusões a uma expressão de um poderoso dirigente do jornalismo global) algumas hipóteses:
(a) Hipótese sincromística: não existem coincidências. Por trás dos fatos da realidade se esconderia uma secreta sintaxe onde em dados momentos símbolos e arquétipos se convergem, criando fortes impactos no contínuo midiático. A onipresença midiática criaria um verdadeiro “horizonte de eventos” – capaz de criar egrégoras ou arquétipos que potencialmente contaminam a realidade por meio da ficção e vice-e-versa.
Por exemplo, a narrativa ficcional de Felizes Para Sempre? bebe na fonte do arquétipo moderno de Brasília – a fotografia em cores gélidas combinadas com as locações que salientam a aridez do concreto e das linhas retas e curvas do modernismo de Niemayer, são signos da Brasília como terra de estrangeiros: todos de passagem, sem vínculos, a não ser de curto prazo e oportunistas. Egrégora de formas-pensamento que invade a ficção (por exemplo, letras de bandas de rock de Brasília como Legião Urbana) ou contamina a própria realidade com os seguidos escândalos políticos na cidade.
O "the last minute rescue" - o clichê a serviço da Polícia Federal |
(b) Hipótese conspiratória: nesse momento está funcionando a todo vapor uma correia de transmissão que ligaria a teledramaturgia com o telejornalismo da TV Globo, alimentado pelo constante vazamento das informações do Judiciário. Essa antecipação permitiria planejamento e sincronização das ações: imagens de forte impacto nos telejornais (como as dos policiais federais escalando o portão da casa do tesoureiro do PT) que ganham a glamourização ficcional nas minisséries.
Depois de décadas de uma opinião pública que cresceu assistindo telenovelas em grade de programação “sanduíche” do horário nobre (telejornal da rede entre duas novelas), onde a teledramaturgia explora temas noticiados no jornalismo da emissora e, vice-e-versa, o jornalismo repercute temas polêmicas abordados pelas telenovelas, esse sincronismo tem sentido: as notícias só passariam a ter relevância para a opinião pública quando ficcionalizados por novelas e séries.
Isso fica evidente na sequência final do último capítulo onde os policiais federais são glamourizados na cena-clichê “the last minute rescue” – inventada nos filmes mudos e repetida ad infinitum nos filmes de ação: a heroína é salva pelo herói sempre no último instante. Os policiais salvam a vida da esposa Marília Drummond cujo marido Cláudio aponta a arma para sua cabeça.
Para evitar que esse sincronismo se torne explícito demais, aplica-se uma estratégia diversionista, como nesse momento ocorre com Felizes Para Sempre?– a “repercussão” propositalmente estimulada pela cena sensual da atriz Paolla Oliveira que performou a personagem Danny Bond, uma garota de programa. Em uníssono, as colunas de TV repetem o mantra “A minissérie trás à tona um tema que está na ordem do dia, mas o que ficou mesmo foi a bunda...”.
(c) Sintoma do tautismo (autismo + tautologia – sobre esse conceitoclique aqui) da TV Globo: em crise de audiência e vendo sua teledramaturgia perdendo a relevância que teve no passado, a emissora assume uma estratégia autofágica – injeta na sua teledramaturgia notícias da pauta do seu próprio telejornalismo.
O efeito autista e tautológico de curto-circuito entre ficção e realidade pode ser acompanhado na sequência onde uma revista informativa chamada “Questão” chega à casa do protagonista Cláudio em Felizes Para Sempre?. A matéria de capa é o escândalo das denúncias contra ele feitas pela sua própria esposa à Polícia Federal. A diagramação e os elementos gráficos são idênticos a da revista Época, informativo semanal da Editora Globo.
O que nos faz retornar à hipótese (b): por assim dizer, a ficção legitima o denuncismo e vazamento semanal das informações judiciais que alimentam semanalmente as matérias de capa das revistas da grande mídia – a capa ficcional da revista “Questão” quer passar a seguinte mensagem subliminar: acredite, todas as manchetes da grande mídia são verdadeiras.
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